–> “Los traidores” (2017)

Los traidores se passa em algum lugar da América do Sul, onde um tirano governa o país controlando, cooptando e manipulando o povo com mãos de ferro. Com tímidas tentativas de organização, “este povo espera por um milagre que resolva todos os seus problemas e deposita todas as suas esperanças num possível Justiceiro” que chega ao poder por acaso, sendo seduzido pela sua posição e abandonando aqueles que criam nele como seu representante inconteste.

O espetáculo dirigido e concebido por Cadu Witter se propõe a questionar a organização política com vigência mais ou menos similar nos países do Cone Sul através do consagrado gênero do teatro musical. Se de uns anos para cá os musicais têm cada vez mais ocupado os palcos do teatro brasileiro numa vertente derivada da Broadway, muitas vezes até com a montagem de espetáculos consagrados no circuito nova iorquino, Witter retoma uma tradição há algumas décadas perdida do gênero: o musical político.

Consagrado no Brasil da década de 1960, o espetáculo musical foi um dos principais meios de manifestação política de oposição ao regime militar (1964-1985), estando algumas peças do gênero no quadro dos principais espetáculos da dramaturgia nacional, como Show Opinião (Armando Costa, Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho – 1964), Arena conta Zumbi (Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri – 1965) e Gota d’água (Chico Buarque e Paulo Pontes – 1975).

Mas o diálogo com o teatro desse período não se dá somente em termos do gênero, mas também em termos de enredo e temática. Muitas foram as peças do chamado teatro engajado, cujo auge se deu entre finais dos anos 1950 e finais da década de 1970, que buscaram denunciar a tirania, a opressão e a repressão vigentes na América Latina, bem como os instrumentos de controle social, político e econômico do sistema capitalista e dos governos que o sustentam no continente. Entre elas, destaco Papa Highirte, de autoria de Oduvaldo Vianna Filho.

Escrita em 1968, mas encenada somente em 1979 por conta do veto recebido pela censura, a peça se passa num local fictício da América do Sul chamado Montalva, onde Highirte, ex-ditador de outra localidade fictícia do continente, Alhambra, está exilado após ser deposto por forças militares auxiliadas pelo capital internacional. As localidades fictícias, na verdade, servem para demarcar o continente sem definir um local específico, funcionando exatamente como a proposta de Los Traidores: “Em algum lugar perdido/Da América do Sul/Existe um povo oprimido/Esquecido, enganado…”

O papel de potências estrangeiras e do poder econômico na manutenção da subjugação do povo dos países do Cone Sul também é denunciado em ambas as peças, através de indivíduos que personificam toda a estrutura que se organiza em nome da desigualdade não só interna a cada uma dessas nações, mas também destas em relação às potências mundiais.

Além disso, tanto em uma peça como em outra, intenta-se mostrar que o problema dos sul-americanos não reside na existência de determinado líder ou tirano, mas sim na perpetuação de sistemas políticos cujas estruturas se baseiam no personalismo e na exclusão das classes populares das instâncias de fato decisórias. Ou seja, não se trata de uma questão pontual e/ou individual, se trata de um problema estrutural, cuja transformação ocorrerá somente através do engajamento e da organização popular.

Se em Papa Highirte Vianinha começava a aprofundar sua pesquisa estética através de incursões no teatro épico, em Los traidores Witter recorre a ela profundamente. Para além da presença de uma narradora que “conduz” a história e da clássica quebra da quarta parede (tem até “Eu nunca”, aquele jogo maneiro), as cenas têm caráter episódico constituindo, ao final, não um eixo dramático linear, mas sim, circular: após a morte do tirano sobe ao poder o justiceiro que, ao final, é substituído por um tirano, o que sugere a sucessão contínua dos eventos.

Ademais, o público é participante não só durante o desenrolar da peça, mas também no momento da compra do ingresso, quando os espectadores são convidados pelo próprio diretor a escrever num pequeno papel qual seria seu pedido para um governante que fosse atendê-lo. As pessoas são orientadas a depositar seu pedido em uma urna. Em dado momento do espetáculo, ela é trazida ao palco pela narradora que entregará aos personagens-povo os papeis para que possam fazer seus pedidos ao novo governante, o justiceiro. A “irmandade” entre os personagens e a plateia está sugerida e materializada quando os pedidos dos primeiros são os mesmos dos segundos.

Por fim, vale ressaltar o sagaz recurso metalinguístico materializado em uma das canções do espetáculo, não por acaso cantada ao início e ao final, em que os atores ironizam a passividade do público de teatro que senta, assiste, se distrai e vai embora. É essa também a crítica a uma população amuada, passiva e que não participa da vida política de seu país.

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Foto: Catraca Livre

Serviço
“Los Traidores”, da Cia. Opsis
SP Escola de Teatro
Praça Roosevelt, 210, República.
Sáb. e Seg, 21h, e Dom., 19h. Até 6/3
R$30. 12 anos
Ficha Técnica
Dramaturgia: Daniel Roda e Cadu Witter
Músicas: Gustavo Macedo
Direção: Cadu WItter
Direção Musical: Gustavo Macedo e Charles Yuri
Coreografias e Direção de Movimento: Elizabeth Pelegrini, Luiz Rodrigues e Cadu Witter
Assistente de Direção: Luiz Rodrigues
Dramaturgismo: Zuca Zenker
Cenografia: César Bento
Iluminação: Marcela Katzin
Figurinos: Peter Dias e Hazuk Perez
Produção: Bruna Botelho, Thaís Galter e Cadu Witter
Assistente de Produção: Denise Verreschi
Elenco: Bruno Gasparotto, Dom Hilarós, Larissa Noel, Lilian Prado, Luciana Pandolfo, Luiz Altieri, Manu Pestana, Murilo Rocha, Selma Paiva, Thais Cabral e Thais Galter.

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–> Sobre “Jacqueline”(2016) e Rafael Gomes

Uma “trilogia de mulheres massacradas” é o que vi de Rafael Gomes entre 2015 e 2017. Trilogia essa composta pelas remontagens/releituras do clássico Um bonde chamado desejo (Tennessee Williams) e da potente Gota d’água (Chico Buarque e Paulo Pontes), e da estreia de seu texto autoral Jacqueline. Em que pesem as questões que particularizam cada uma delas, desde já eu digo: Gomes é dos melhores diretores teatrais da atualidade. Sua direção crítica, dinâmica e que, invariavelmente, potencializa o texto, se soma ao sábio diálogo com o espaço em que as montagens tomarão corpo. Cercando-se de uma equipe igualmente competente, o jovem diretor levou aos palcos duas peças bastante marcantes – as releituras – e uma terceira que tem problemas, mas ainda assim revela a busca por uma dramaturgia preocupada em pensar e dialogar com seu tempo.

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Foto do site: levaumcasaquinho.blogspot.com.br

O cenógrafo André Cortez e o iluminador Wagner Antônio têm trabalhos magistrais. O cenário do Bonde é das coisas mais incríveis que já vi, a melhor utilização do Tucarena que já presenciei, e ajudou a fazer da montagem um dos grandes sucessos da temporada 2015. Na versão “redux” de Gota d’água, os andaimes em movimento remetem à multiplicidade de sets que organizou a montagem original do texto (1975), adaptando-a à redução de personagens sem abandonar a proposta de dinamização da cena que objetivavam os autores. Sobre Jacqueline, ouso dizer que o cenário ajuda a “salvar” a montagem, conferindo a ela um ritmo que o texto não tem.

No mesmo sentido, a iluminação de Antônio busca não só a dinâmica das montagens como demarca passagens de espaço e tempo, situando o espectador no desenrolar da ação sem, no entanto, vetar-lhe o acesso aos “bastidores” do teatro: é possível observar mudanças no cenário, trocas de figurino, reposicionamento dos atores… O mundo por trás da coxia. A meu ver, isso só engrandece uma montagem, descortinando o teatro sem abrir mão completamente do seu pacto de realidade, mas sim, refinando-o. Lembrando sempre o próprio Brecht: todo teatro bom é entretenimento.

Se sobre Um bonde chamado desejo e Gota d’água [a seco] não tenho nada a acrescentar além da recomendação “Se puderem, assistam!!!”, ainda é preciso falar sobre Jacqueline. E é inevitável para mim pensá-la sem tomar as outras duas como matriz de comparação. Não só porque elas acabam por compor uma trilogia, mas também porque vi o Bonde e saí completamente mexida. Vi Gota e pensei: gente, que coisa maravilhosa! Cheguei pra ver Jacqueline com a expectativa no céu e não fui completamente contemplada. Creio que dois elementos foram fundamentais para isso: o texto arrastado e moroso e o elenco desigual.

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Foto do site: catracalivre.com.br

Como já falei, a dinâmica de Jacqueline fica toda nas costas da montagem/direção, favorecida pelo cenário e pelo jogo de luz, mas não se sobressai no texto. Talvez a busca pelo rompimento na fronteira entre teatro e concerto tenha feito do primeiro subsidiário do segundo e não o contrário, como (modestamente) acho que funcionaria melhor. Já no que tange ao elenco, as duplas acontecem de maneira desequilibrada. Se Arieta Corrêa e Fabrício Licursi, que interpretam a irmã e o cunhado da protagonista, conferem a seus personagens uma potência interessante, Daniel Costa – que interpreta o marido de Jacqueline – não se encaixa, assumiu um tom inadequado ao papel. Já Natália Lage, diferentemente de Maria Luisa Mendonça e Laila Garin – que protagonizaram, respectivamente, Bonde e Gota –  não sustenta sua personagem, não convence.

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Trecho do programa de Jacqueline.

Mas, apesar de tudo isso, Jacqueline é uma peça importante. Para o teatro e para o papel da arte na sociedade. Porque se propõe a repensar linguagens e espaços, se reinventar, e porque coloca em cena mais uma mulher que nos escancara a força que tem(mos). As três mulheres são massacradas sim, mas não em silêncio. Não se deixam massacrar sem resistência, sem o esbravejar próprio de quem tem suas forças repetidamente sugadas pela sociedade em que vive. E, apesar de quererem chamá-las loucas/surtadas (arma mais baixa e covarde de autorreprodução dessa sociedade misógina), Blanche, Joana e Jacqueline expressam lucidez em cada grito, em cada palavra, em cada lágrima.

A temporada de Jacqueline no Teatro Anchieta do SESC Consolação se encerra no próximo dia 29. Yo que vos, iria.

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Foto do site: deolhonacena.com.br

 

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–> Uma história de loucura (Une histoire de fou), 2015

O filme de produção francesa e direção armênia, de Robert Guédiguian,  se passe em três momentos do século XX. O primeiro se passa no ano de 1921, com o assassinato de Tallat Pacha, um dos responsáveis pelo genocídio armênio (promovido pelos turcos em 1915), enquanto este vivia em Berlim e o julgamento que a essa ação se seguiu, terminando com a absolvição de Soghomon Thelirian, único integrante de sua família sobrevivente ao massacre.  O segundo momento é também o mais longo em termos fílmicos e se passa nos primeiros anos da década de 1980 e se centra na trajetória de Aram, um jovem francês de origem armênia que, após explodir o carro do embaixador turco, deixa tudo para trás e se muda para Beirute a fim de se engajar na guerrilha armada que lutava pela reparação territorial da Armênia e pelo reconhecimento oficial do genocídio pelo Estado turco. O terceiro momento é breve, quando a mãe de Aram retorna à agora nova Armênia para enterrar as cinzas de sua mãe, que até ó último momento de sua vida desejava voltar para casa.

Apesar de cumprir uma função interessante – e necessária – de divulgar mundialmente o caso do genocídio armênio, ainda bastante desconhecido 111 anos depois, não me parece que ele de fato proponha uma discussão profunda do tema, seja sobre o acontecimento de fato, seja das ações que a ele se seguiram ao longo do século XX. Isso porque a construção dos personagens e das situações do início dos anos 1980 me lembrou bastante o filme O que é isso, companheiro? (1997), do brasileiro Burno Barreto. Em ambos os filmes o líder da luta armada é representado como um louco sádico e sanguinário que recruta jovens inocentes e sonhadores desavisados para a realização de ações indignas das quais o próprio líder não tem muita coragem de participar. Pouco tempo depois de ingressar na guerrilha armênia, Aram passa a questionar as ações do grupo, em razão das vítimas inocentes que elas causavam. As ressalvas de Aram se dão muito em função do fato de que sua primeira ação, a explosão do carro do embaixador turco, também resultou numa vítima inocente. 

Além disso, temos também um guerrilheiro mais velho – que não é o líder – que também parece se arrepender, passando a questionar até mesmo a tática armada e abandonando o grupo. Numa única cena este guerrilheiro mais velho discute com o líder da organização, o que temos é o reforço da ideia de que a luta armada é uma opção de jovens inconsequentes. Outro ponto de semelhança entre os filmes é a relação amorosa entre o guerrilheiro hesitante (Aram e Gabeira) e uma guerrilheira convicta (Anahit e Vera), o que acaba por confundir as atitudes de ambos e melodramatizando as convicções políticas e a representação dos guerrilheiros. 

Outro ponto relevante é que, como todo filme, Une histoire de fou apresenta uma discussão bastante ligada a seu tempo de produção, o que talvez sublime o aprofundamento da discussão do seu tempo de representação. A questão do terrorismo, da legitimidade de ações armadas e da denúncia contra situações de opressão é muito latente na França de hoje e me parece que o filme diz muito mais sobre essa discussão do que sobre o genocídio armênio e as lutas por reparação histórica dos armênios em si. O que não é um problema, apenas deve ser observado com atenção.

Assista ao trailer.

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Direção: Robert Guédiguian

Roteiro: Robert Guédiguian, Gilles Taurand

Elenco: Simon Abkarian, Arian Ascaride, Grégoire Leprince-Ringuet, Syrus Sahidi, Razane Jammal

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